Aquele canto o chamava.
Desde criança, quando ouvia aquele som, algo dentro dele tremia, queria seguir
o ardiloso convite, que o tocava profundamente na alma.
Por anos, teve que se conter
e controlar os seus desejos. Pensava nos pais, na família que o censuraria.
Mas, agora, ninguém mais iria segurá-lo: Harley tinha a sua motocicleta.
Comprada à prestação, mas não importava.
Ele poderia sair livremente
pelas avenidas de São Paulo e se unir à tribo de motociclistas. Amor, paixão,
loucura e liberdade. Novos horizontes para sua vida, sem tédio, sem monotonia.
A primeira coisa que Harley
fez foi mostrar sua moto aos amigos. Exibir sua conquista. Os jovens vibraram
junto com ele e aceleraram pelo bairro, incomodando os vizinhos. Mas, quem se
importava?
Sonhos se realizando. A
garota cobiçada aceitou sair com ele para comer um cachorro-quente. Finalmente,
conseguiu pegar a princesinha. Sentia-se um herói, nada temia. Seu sex appeal tinha aumentado entre as garotas do bairro.
Nos dias seguintes,
conseguiu um trabalho de motoboy. Poderia explorar a cidade e ainda ganhar seu
dinheirinho – precisava pagar a prestação. Rebouças, Consolação, Ibirapuera,
Santo Amaro, Radial Leste, Cardeal Arcoverde, ruas e mais ruas para explorar.
Emoção é voar. Passar pelo
semáforo quando já está vermelho. Ziguezaguear pelos corredores. Brigar com os
motoristas, conversar com os taxistas. É preciso ser rápido. Aquele canto que o
chamava quando criança tocava cada vez mais alto. Pulsando. Acelerando.
Harley viu que a cidade tem
milhões de pessoas iguais a ele, cuja existência vai sendo tecida em torno do
ronco do motor de uma motocicleta. Enfileiravam-se na hora do rush, enquanto esperavam o sinal abrir.
Contagem regressiva...3, 2 1: verde. Lá iam todos com suas motos e seus
capacetes coloridos, envoltos no ar poluído.
Desacelerar? Só quando um
desconhecido é visto caído no asfalto. Todos viram amigos e feras em defesa do
motociclista que espera o serviço de resgate, deitado no meio da Marginal. Cadê
o culpado pela queda?
Os pais de Harley rezam todo
dia para que Deus proteja seu filho a rodar pelo trânsito de São Paulo. Eles e
outros milhares de mães e pais que sabem que a sedutora canção invade o cérebro
e entorpece a razão. O que pensa Harley?
Riscos? São fonte de
adrenalina. Lama? Se transforma num manto de proteção. Sonho? O dia no qual poderá comprar a sua Harley Davidson e curtir a sua Rota 66.
Harley: seu nome tinha sido escolhido em homenagem ao cometa, mas estava totalmente associado ao seu estilo de vida. Mas, por enquanto, o sonho de viver a aventura estradeira era apenas um sonho e nada abalaria sua alegria,
mesmo que tivesse de disputar cada centímetro de estrada com outras motos,
carros, caminhões, ônibus...
“Harley comprou a sua moto e
passou a se sentir total, sentir total. Harley e sua moto, mas que união feliz”. Até quando?
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