Crônica: Sobre movimentos e metamorfoses

Crônica: Sobre movimentos e metamorfoses

Que calor! A temperatura estava abafada. Sentia-me numa sauna no meio daquela multidão. Um cheiro de suor e de adrenalina. Não tinha como ficar parada. Era preciso manter as pernas em movimento para conservar o aquecimento realizado há pouco na calçada. Minha estreia na corrida de São Silvestre. Uma vitória, mais um desafio superado. Tudo certo para encerrar um ano marcado por um pé na bunda e por transformações.
Algumas gotas de suor caiam da minha testa e a prova nem tinha começado. Devia ser a dissipação da cólera que me incitou durante o ano inteiro. Cada passo nos treinos no Parque do Povo tinha na raiva um combustível. Quilos perdidos, centímetros de barriga deixados para trás. Uma nova pele, mais lisa e cheia de vigor.

O idiota que me abandonara tivera um efeito positivo. Metamorfose. Libertação. Mais prazer.  Cheguei a pensar que pisaria na cabeça dele ao passar pela linha de chegada, como fazemos com um capacho. Delírios promovidos pelo calor.

No meio daquela gente toda, eu rememorava aquele namoro insosso. Ele não fora o meu melhor namorado e olha que eu nem sou tão rodada assim. Mas, com a escassez masculina, vamos nos contentando com o que aparece. Colocamos uma máscara de satisfação e levamos a vida. “Deixa a vida me levar. Vida leva eu…”.
Ouvi o autofalante. Faltavam apenas 3 minutos para a largada. Preferi ficar sozinha na corrida para fazer o meu ritmo e desaparecer naquele mundaréu de pessoas. Divagar, ir devagar, acelerar, evaporar, parar se assim eu quisesse. Até hoje não consigo entender como alguns insanos conseguiam vestir fantasias tão estranhas e caminhar (correr nem pensar).
Veio na mente a festa à fantasia da faculdade. Uma das poucas que tinha ido com o “falecido” namorado: Barney e Betty – nós formamos um casal da pedra lascada naquela noite. Exibi pernas bonitas, mas estava fora do peso. O vestido ficara apertado e tive vontade de bater em uma amiga bêbada que viera fazer piada com os meus trajes.  Por que o álcool deixa as pessoas tão insensíveis? Também ingeri muita cerveja e vodka para entrar no embalo da galera e…vomitei lá pelas 4 da manhã. 
Largada! Senti a multidão se mover. Agora a raiva era dirigida àquele monte de gente a me empurrar. Já tinham me avisado. O começo era difícil, mas não imaginava levar estas cotoveladas. Sobreviver a largada. Esta era a primeira parte da estratégia. O resto sairia como desse. Meu número era o 6578. Acho que jogaria estas dezenas na MegaSena.
O ar ao meu redor começou a ficar mais fresco. Estava na corrida. Iria até o fim, permanecia com disposição. Sentia uma calmaria interior, apesar do esforço físico. Ombros retos, sem esmorecer. Sabia que eu estava mais gostosa, apesar das ondas de insegurança que me davam um “caldo” de vez em quando. Paquerar esta era a meta para o Ano Novo. Precisava de água e de manter a respiração. Um senhor de uns 50 anos passou por mim: “Vamos garota!” Sorri timidamente e acenei. Foi então que percebi vários rapazes de pernas musculosas passarem por mim já na Consolação. Boa visão para me motivar na prova. Vou atrás deles até onde conseguir. Bye! Encontro vocês na linha de chegada.

Compartilhar esse artigo

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *